KUARUP: A CERIMÔNIA DE POVOS INDÍGENAS DO XINGU QUE HOMENAGEIA OS MORTOS

  

Pinturas corporais fazem parte do ritual de preparação para as lutas de huka--huka. Em geral, os indígenas do Xingu usam o jenipapo para produzir a cor preta, e o urucum origina o vermelho (Foto: Ricardo Teles)

Pinturas corporais fazem parte do ritual de preparação para as lutas de huka--huka. Em geral, os indígenas do Xingu usam o jenipapo para produzir a cor preta, e o urucum origina o vermelho (Foto: Ricardo Teles)


  • LARISSA LOPES | EDIÇÃO: LUIZA MONTEIRO
 ATUALIZADO EM 

Em julho de 2021, o encontro anual dos povos indígenas para a competição foi registrado pelas lentes de Ricardo Teles, fotógrafo gaúcho que estava visitando o Xingu a convite de uma amiga, a jornalista Ana Augusta Rocha, que desenvolve atividades de apoio às comunidades da região. Os cliques formaram uma galeria de imagens potentes, que mostram a beleza, a intensidade e a espiritualidade envolvidas na luta, um ritual de encerramento do Kuarup, evento de três dias dedicado aos mortos das aldeias xinguanas.

“Registrar essa cerimônia foi um desafio tanto pela responsabilidade de mostrar um ritual tão rico e solene quanto esse quanto por ter de dar um novo olhar ao Xingu, tão retratado por grandes nomes da fotografia brasileira, como Maureen Bisilliat José Medeiros”, afirma Teles à GALILEU. “Mas o resultado foi recompensador e acompanhar essa festa sagrada foi uma experiência incrível.”

Os povos indígenas do Xingu convidam comunidades vizinhas de outras etnias para participar dos rituais do Kuarup e prestar homenagens aos membros falecidos  (Foto: Ricardo Teles)

Os povos indígenas do Xingu convidam comunidades vizinhas de outras etnias para participar dos rituais do Kuarup e prestar homenagens aos membros falecidos (Foto: Ricardo Teles)

Agachados no chão de terra batida no centro da aldeia Afukuri, da etnia Kuikuro, duplas de adversários se enfrentam diante do público reunido ao entorno, formado principalmente por povos de diversas etnias que vivem no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Alguns turistas também observam, admirados, a luta tradicional da região.

Concentrados, encarando um ao outro, cada lutador tem o objetivo de levantar o opositor e derrubá-lo com as costas no chão ou, então, tocar na parte inferior de seu joelho para vencer a luta e ganhar o reconhecimento das tribos convidadas para a partida. Antes do confronto, todos os competidores passam por um processo de purificação por meio da ingestão de chás, ervas, jejum e privação de sono. Esse é o huka-huka, uma arte marcial genuinamente brasileira praticada no Alto do Xingu.

Não à toa, os registros emocionaram os jurados do Sony World Photography Awards 2022, prêmio anual realizado pela Organização Mundial de Fotografia. Com seu ensaio, batizado de Kuarup, Ricardo Teles venceu na categoria Esporte. Considerando que 2021 foi marcado pelos Jogos Olímpicos de Tóquio, a concorrência não foi fácil. Em segundo lugar ficou o australiano Adam Pretty, com fotos em preto e branco das Olimpíadas e Paralimpíadas no Japão; e, em terceiro, o tcheco Roman.

Não à toa, os registros emocionaram os jurados do Sony World Photography Awards 2022, prêmio anual realizado pela Organização Mundial de Fotografia. Com seu ensaio, batizado de Kuarup, Ricardo Teles venceu na categoria Esporte. Considerando que 2021 foi marcado pelos Jogos Olímpicos de Tóquio, a concorrência não foi fácil. Em segundo lugar ficou o australiano Adam Pretty, com fotos em preto e branco das Olimpíadas e Paralimpíadas no Japão; e, em terceiro, o tcheco Roman Vondrouš, com cliques que retratam o fanatismo de torcedores de um time de futebol de seu país

“O resultado foi recompensador e acompanhar essa festa sagrada foi uma experiência incrível"

Rodrigo Teles, fotógrafo gaúcho vencedor do Sony World Photography Awards 2022

ANO DE DESPEDIDAS

Assim como as Olimpíadas, o Kuarup também foi cancelado em 2020 por consenso entre os líderes indígenas do Xingu, como medida preventiva contra a pandemia de Covid-19. O adiamento para o ano seguinte não deixou de provocar frustração e tristeza entre aqueles que perderam entes e amigos queridos durante a crise sanitária.

Afinal, o Kuarup é uma cerimônia importante para os indígenas enlutados do Xingu: perante toda a comunidade, eles se despedem pela última vez do membro falecido, que finalmente faz sua passagem para o mundo dos espíritos.

Na noite que antecede o huka- -huka, nenhum dos lutadores pode comer nem dormir. Para os povos indígenas do Xingu, aqueles que adormecem e sonham irão perder (Foto: Ricardo Teles)

Na noite que antecede o huka- -huka, nenhum dos lutadores pode comer nem dormir. Para os povos indígenas do Xingu, aqueles que adormecem e sonham irão perder (Foto: Ricardo Teles)

Os dois primeiros dias da celebração, que é encerrada com as lutas de huka-huka, são dedicados à recepção dos povos vizinhos convidados e às homenagens aos mortos. Familiares enlutados passam uma madrugada inteira chorando e rezando pelos parentes falecidos, que são representados por troncos pintados e adornados, dispostos no centro da aldeia. As pessoas se abraçam e, ao final do ritual, esses totens são lançados no Rio Xingu e seus afluentes como despedida final.

Após as disputas entre adultos, os adolescentes também lutam pela vitória, enquanto as crianças participam dos preparativos para o ritual. É uma forma de passar os costumes da aldeia de geração em geração. (Foto: Ricardo Teles)

Após as disputas entre adultos, os adolescentes também lutam pela vitória, enquanto as crianças participam dos preparativos para o ritual. É uma forma de passar os costumes da aldeia de geração em geração. (Foto: Ricardo Teles)

No ano passado, cinco pessoas da aldeia Afukuri foram homenageadas no evento — quatro delas haviam morrido de Covid-19. Os Kuikuros são um dos 162 povos originários do país que registraram infecções pelo Sars-CoV-2 desde o início da pandemia.

Até o dia 30 de maio, mais de 71,5 mil indígenas foram diagnosticados com a doença e 1.310 faleceram em decorrência da infecção, segundo o levantamento Covid-19 e os Povos Indígenas, produzido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Por serem um grupo prioritário na fila de vacinação, boa parte dos adultos da aldeia já estava completamente imunizada durante o Kuarup em 2021. Para garantir a segurança de todos, os turistas também tiveram que apresentar comprovante de vacinação e testaram para a doença quando chegaram ao parque do Xingu. “Tomamos todos os cuidados para nos certificar de que ninguém passaria o vírus para as comunidades da região”, conta Teles. Na ocasião, ele estava visitando os povos indígenas da reserva pela terceira vez.

BRASIL PROFUNDO

Teles conheceu o Xingu em 2016, quando foi acompanhar o trabalho desenvolvido por médicos voluntários nas tribos locais. Em sua primeira visita, o fotógrafo conheceu o cacique Kotok Kamayurá, que o convidou para a acompanhar a cerimônia do Kuarup, que ocorreria dali alguns dias. “Naquela época, eu não pude ficar até a data, mas foi daí que surgiu a vontade de conhecer de perto esse ritual”, confessa. 

As lutas de huka-huka também envolvem outros rituais, como danças e cantos tradicionais, anteriores aos jogos que encerram a cerimônia do Kuarup. (Foto: Ricardo Teles)

As lutas de huka-huka também envolvem outros rituais, como danças e cantos tradicionais, anteriores aos jogos que encerram a cerimônia do Kuarup. (Foto: Ricardo Teles)

No mesmo ano, ele retornou ao parque nacional com a missão de fazer uma reportagem fotográfica para a edição brasileira da revista National Geographic. A espera para acompanhar a cerimônia foi longa por conta dos desafios financeiros e logísticos que a viagem envolve. Para chegar ao Xingu, o fotógrafo viajou de avião de São Paulo até Goiânia e encarou oito horas de trajeto de ônibus até a cidade de Canarana (MT), além de cinco horas de carro para chegar à aldeia Afukuri.

Uma vez lá, ele passou uma semana com o povo Kuikuro para se integrar à comunidade e entender a cultura local. “Estabelecer uma amizade e confiança é algo superimportante para documentar uma festa como essa”, diz Teles.

Para o gaúcho, ter esse trabalho reconhecido por um dos prêmios internacionais de fotografia mais relevantes é uma forma de realizar seu sonho de apresentar o país para o mundo. “Eu me orgulho muito disso, de mostrar às pessoas a beleza do Brasil profundo, de aldeias, quilombos, comunidades tradicionais e de imigrantes”, comemora Teles, que teve suas fotos expostas no palácio Somerset House, em Londres, na Inglaterra, entre abril e maio deste ano.

O profissional espera que, por meio da fotografia, as pessoas passem a valorizar mais a diversidade de povos e culturas do país e, quem sabe, aprender novas formas de lidar com as próprias dores deixadas pela pandemia.

Fonte:https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2022/07/kuarup-cerimonia-de-povos-indigenas-do-xingu-que-homenageia-os-mortos.html


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