A globalização da ayahuasca na Amazônia peruana
Em Pucallpa, as comunidades indígenas estão diante do turismo psicodélico. Cerca de 80% dos viajantes buscam rota xamânica. Agências de fora lucram com pacotes e abrem “centros de rituais” – muitas vezes sem preparo para aplicá-los…
OUTRASMÍDIAS
Por CartaCapital
Publicado 19/10/2022 às 15:02
Atualizado 19/10/2022 às 16:17
Por Carlos Minuano, na CartaCapital
“Tenho 250 anos”, diz o escritor peruano Welmer Cárdenas Díaz, em frente a uma banca improvisada de livros e revistas em uma rua do centro de Pucallpa, capital da região amazônica de Ucayali, no Peru. Com chapéu e óculos escuros, ele se protegia como dava do sol que ardia em torno de 36º graus. Era quase meio-dia de um sábado de setembro e a sensação térmica passava de 40º.
Após uma pausa breve, o escritor explica: “É a minha idade cósmica, não física”. Quem lhe disse foi um antigo xamã após uma cerimônia com a bebida indígena psicodélica, ayahuasca. Díaz é autor de El brujo Arimuya, um livro de relatos míticos sobre o universo visionário dos antigos curandeiros da Amazônia.
Em Pucallpa, coração místico da selva amazônica peruana, o universo xamânico da ayahuasca não está apenas nos muitos centros que oferecem sessões com a beberagem psicoativa. Ela está entranhada na cultura da cidade, nos livros, em pinturas, muros, artesanatos e nas histórias das pessoas, como o escritor que afirma ter 250 anos.
Mas o xamanismo amazônico precisa enfrentar forças poderosas para continuar existindo. Tem que resistir ao preconceito local, ao fanatismo religioso, ao turismo psicodélico, a interesses econômicos – além da ação ilegal de garimpo, extração de madeiras e a presença cada vez mais ameaçadora do narcotráfico.
“Metade das 176 comunidades Shipibo-Conibo na região de Ucayali enfrenta problemas com invasões em seus territórios”, afirma o comunicador indígena Carlos Franco Rojas, 39, fundador e coordenador de um canal digital de TV.
“Sou cristão, não gosto de ayahuasca”
A reportagem aterrissou em Pucallpa no início de setembro, por acaso, no primeiro dia de um congresso sobre turismo que acontecia na cidade. O evento organizado por uma agência turística local, a Amazon World, reuniu operadores do setor de várias regiões do Peru.
Boa parte das agências oferecem pacotes xamânicos para viajantes interessados em aventurar-se no universo de transformação e transcendência da ayahuasca, desde que pagando um bom punhado de dólares, claro.
Porém, poucos aceitam falar disso abertamente com jornalistas. Apesar de algumas tradições indígenas incorporarem elementos do cristianismo em seus rituais, para religiosos mais radicais, o xamanismo amazônico é coisa do capeta.
“Sou cristão, não gosto de ayahuasca”, disse um operador durante o evento, mais interessado em vender uma estadia no hotel em que trabalha. “Mas sei que tem muita importância para o turismo”, prossegue o agente. Ou seja, como dá dinheiro, eles não só aceitam como ganham, e muito, em cima do movimentado circuito xamânico.
Embora não sejam dados oficiais, estima-se que 80% dos turistas que visitam Pucallpa viajam por causa da ayahuasca. A grande maioria são estrangeiros de diferentes partes do mundo, com alto poder aquisitivo. A secretaria de turismo da cidade foi procurada pela reportagem, mas não atendeu a solicitação de entrevista.
Turismo psicodélico
Em 1953, dois anos depois de matar a esposa acidentalmente com uma arma de fogo, o escritor norte-americano William Burroughs, se mandou para a selva amazônica em busca da ayahuasca. Viciado em heroína, ele procurava a cura, ou o “barato definitivo”, como ele próprio escreveu nas últimas páginas do livro “Junky” (Companhia das Letras).
O escritor, um dos ícones da contracultura, bebeu ayahuasca em Putumayo, na Colômbia, e em Pucallpa, no Peru. Durante sua expedição alucinada pela América do Sul, ele escreveu em vários momentos para o amigo, o poeta beatnik Allen Ginsberg, que sete anos depois também viajou para a selva amazônica para conhecer o chá psicodélico.
Parte da correspondência entre eles, bem como o relato da experiência de ambos, são o recheio do livro “Cartas do Yage” (L&PM). A obra mostra que o turismo em torno da ayahuasca não é um fenômeno recente na Amazônia peruana.
“Yagé” é um dos nomes dados à beberagem psicodélica, mas há vários outros entre os povos indígenas da Amazônia que usam a bebida há milhares de anos. “Ayahuasca”, por exemplo, é um termo quéchua (idioma dos incas), em geral, traduzido como “corda dos mortos”.
No Brasil, a ayahuasca é também conhecida por “santo daime” ou “vegetal” em grupos religiosos que incorporaram o chá em seus rituais, desde a primeira metade do século passado.
Mas, o cenário hoje em Pucallpa é bem diferente daquele que os desbravadores beatniks encontraram quando estiveram por lá nas décadas de 1950 e 60. Há tempos o circuito xamânico vem se estruturando para atender os muitos viajantes que chegam em busca da ayahuasca durante todo os meses do ano.
É esse o trabalho do indígena ashaninka, Arturo Reátegui. Ele é gerente de operações da agência de turismo Amazon World, que há mais de 20 anos atua na região de Ucayali. Há 15 anos, ele também dirige cerimônias com a bebida ayahuasca.
Ele se incomoda com o termo xamanismo. “Isso vem das culturas da Sibéria e da Europa, onde não há ayahuasca, aqui na América Latina, chamamos de curandeirismo”, corrige. “Minha avó era curandeira.” Segundo ele, a ayahuasca vem alcançando muita importância, mas ao mesmo tempo tem sido usada de uma maneira muito distorcida.
Reátegui garante não ser o seu caso. Ele se diz um defensor da tradição. Conta que através do trabalho com turismo teve a sorte de conhecer outras culturas e técnicas de uso da bebida psicodélica. “Aprendi com muitos ‘maestros’, por exemplo, com os maias, astecas e com os amazônicos, shipibos, cocamas e ashaninkas.”
O curandeiro, e empreendedor xamânico, conta ter reunido todas essas técnicas em um pacote que é oferecido aos viajantes em Pucallpa. Além de três noites de cerimônias com ayahuasca, Reategui explica que outras plantas também são utilizadas, por isso prefere vender a experiência no cardápio de sua empresa como medicina tradicional indígena.
Durante a estadia em Pucallpa, a reportagem pediu para conhecer o centro de ayahuasca onde acontecem os trabalhos oferecidos pela Amazon World, mas apesar de vários contatos, não houve retorno. Outras agências de turismo também foram procuradas, mas não quiseram falar.
Embora a ayahuasca no Peru seja reconhecida como patrimônio cultural, desde 2008, percebe-se por lá um certo preconceito em relação a essas práticas. Em Pucallpa, tal como em outras regiões do país, parte da população, em geral, a mais religiosa, acha que as práticas de curandeirismo são coisas diabólicas – de fato, há muita bruxaria por lá. Para outra parcela dos peruanos, se trata apenas de um atrativo para turistas estrangeiros.
Invasão russa
Na última década, tem aumentado bastante o fluxo de turistas na rota xamânica peruana, que além de Pucallpa, inclui outras cidades como Tarapoto, Iquitos e Cusco. Chegam pessoas de todas as partes do mundo, mas chama a atenção a quantidade de turistas vindos da Rússia.
A movimentação deles na Amazônia peruana é tão intensa que tradutores de russo se tornaram elementos fundamentais para acompanhar grupos que chegam ao país para turnês amazônicas psicodélicas. Enquanto na Rússia, a ayahuasca atualmente é proibida. No Peru, há russos ganhando dinheiro com o chá psicodélico.
“Conheço um russo que tem uma hospedagem na selva de Pucallpa e que contrata os indígenas para dirigir as cerimônias”, conta o peruano Lizandro Girao, 42, tradutor do idioma, que acompanha grupos de turistas que viajam ao país para beber ayahuasca.
Girao cresceu na Amazônia peruana, mas ainda bem jovem se mudou para Moscou para estudar. Ele conta que o primeiro contato direto com os indígenas e com a ayahuasca foi na capital russa. “Eu trabalhava como intérprete de espanhol e fui chamado para acompanhar um grupo de xamãs que fazia trabalhos por lá.”
“Hoje não seria possível”, diz Girao. Desde 2017, as cerimônias de ayahuasca pararam de acontecer no país. “A situação com a justiça na Rússia estava ficando muito complicada”. Segundo o tradutor, desde então, o fluxo de turistas russos na Amazônia peruana só tem crescido.
Um caso na Rússia, que ganhou repercussão internacional, foi a prisão do terapeuta holístico brasileiro, Eduardo Chianca. Em 2016, detido em Moscou com quatro garrafas de ayahuasca, ele foi condenado por tráfico internacional de drogas.
O terapeuta permaneceu preso por lá durante dois anos até receber autorização para cumprir a pena no Brasil, isso após uma longa negociação com a justiça brasileira, que culminou na assinatura de um termo de reciprocidade entre os países. Ou seja, se um cidadão russo for condenado em solo brasileiro, poderá cumprir sua pena na Rússia.
Globalização da ayahuasca
Não há números oficiais, mas estima-se que o Peru seja um dos países onde mais se bebe ayahuasca no mundo – o Brasil também encabeça a liderança do ranking. O interesse cada vez maior pela bebida psicoativa amazônica fora desses países segue na esteira do crescimento dos estudos científicos com o chá amazônico e com outras substâncias psicodélicas.
Pesquisas realizadas desde a década de 1980 indicam que a ayahuasca, além de não oferecer riscos à saúde, possui um potencial terapêutico para tratamentos de dependência química e de transtornos mentais, como depressão e ansiedade.
A proibição da ayahuasca na Rússia e em outros países, como França e desde março deste ano na Itália, revelam políticas de drogas que caminham na contramão de evidências científicas, prejudicando direitos indígenas e o avanço de pesquisas que poderiam trazer benefícios para a saúde pública.
“Ayahuasca é uma medicina usada por muitos povos indígenas para a cura de diferentes tipos de doenças”, defende Jeffrey Bronfman, membro da ADF Ayahuasca Defense Fund projeto de assessora jurídica do Iceers. (International Center for Ethnobotanical Education, Research, and Service), instituição de pesquisa na Espanha que estuda as substâncias psicodélicas.
A ayahuasca é uma bebida preparada a partir da decocção de duas plantas, o cipó Banisteriopsis caapi, conhecido como mariri, e folhas da espécie Psychotria viridis, chamada de chacrona, que tem como princípio ativo o alucinógeno DMT. A substância, desde a Convenção de Viena sobre Substâncias Psicotrópicas, em 1971, consta da lista de substâncias proibidas da convenção de drogas da ONU.
“A DMT é proibida em todas as nações signatárias da convenção. No caso da ayahuasca, isso pode representar restrições e controles mais ou menos rígidos”, afirma a advogada da ADF, Constanza Sánchez. No Brasil, o uso religioso é permitido por uma resolução de 2010, do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas).
Herança cultural e resistência indígena
No Peru, outro contraponto aos avanços da ciência psicodélica é a miséria em que sobrevivem muitos povos indígenas. Isso enquanto o segmento das drogas psicodélicas se consolida como uma nova corrida do ouro. O setor tem atraído investidores em todo o mundo e já vale algo em torno de US$ 190 milhões, segundo relatório do grupo Psych/Blossom, de 2021.
Mas essas cifras não fazem diferença para os muitos indígenas do povo Shipibo-Conibo que pedem esmola ou que se espalham por calçadas vendendo seus artesanatos. A reportagem encontrou vários assim pelas ruas de Pucallpa.
O povo shipibo é um dos mais antigos detentores dos conhecimentos milenares que envolvem a ayahuasca e outras tantas plantas amazônicas. Por lá, o impacto do movimento que se convencionou chamar de renascença psicodélica foi no turismo xamânico, que aumentou nos últimos anos.
Entretanto, o crescimento do consumo da ayahuasca e do fluxo de viajantes para a Amazônia peruana estão ameaçando a verdadeira medicina tradicional indígena, diz o curandeiro César Maynas, 51, que é de uma antiga linhagem de xamãs da etnia Shipibo-Conibo.
Muitos estrangeiros estão investindo no setor xamânico, ganhando fortunas com pacotes turísticos amazônicos caríssimos envolvendo a ayahuasca, mas pagando bem pouco para os indígenas que são contratados para realizarem as cerimônias.
Segundo o shipibo Maynas, a vida dos verdadeiros curandeiros não é nada fácil. “Tem que se isolar na selva em longas dietas para tomar plantas e com várias restrições alimentares”. É um trabalho que exige anos de dedicação, durante a vida toda, diz o indígena. Ele conta que começou a aprender a trabalhar com as plantas amazônicas aos 12 anos, com a avó curandeira.
Hoje, Maynas trabalha junto com a esposa, Fidelia Ahuanari, 45, e com outros parentes, todos curandeiros. A família de xamãs dirige os trabalhos no centro de medicina tradicional Rao Kano Xobo (em português, casa da medicina), que há mais de 25 anos funciona em Yarinacocha, há cerca de 20 minutos do centro de Pucallpa. “Usamos várias plantas, não é apenas a ayahuasca que cura”, diz Ahuanari.
O casal de curandeiros adverte ainda que muitas pessoas despreparadas, com pouca experiência, abrem centros de ayahuasca no Peru. “Muitos se dizem xamãs, mas não são, e fazem mau uso da planta”, diz Ahuanari. Segundo ela, muitos problemas decorrem disso, há casos de abuso sexual, financeiro e pessoas mal atendidas durante as cerimônias.
E além dos impactos negativos do turismo xamânico, indígenas também enfrentam outras ameaças. “Grandes empresas (de petróleo e gás), madeireiros e narcotraficantes estão invadindo os nossos territórios”. E o desmatamento está afetando até a sustentabilidade da ayahuasca, lamenta a curandeira Ahuanari. “Hoje em dia temos que ir bem longe para colher as plantas.”
Esta reportagem teve o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center e do Fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas da Fundação Gabo e Open Society Foundations
Carlos Minuano é editor da Psicodelicamente, revista digital independente de jornalismo sobre psicodélicos
Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-globalizacao-da-ayahuasca-na-amazonia-peruana/
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